terça-feira, 8 de junho de 2010

O Inquietante em Freud

Em 1919 Sigmund Freud escreveu um texto intrigante (para não dizer inquietante) abordando uma dimensão característica, porém misteriosa, do ser humano. O tema em questão seria a propriedade tipicamente humana de se deixar ser tocado por tudo aquilo que não nos seria familiar. Entretanto, justamente este desconhecido nos seria, na verdade, algo extremamente familiar (e exatamente por isso causador de certa estranheza).
Confuso?
Paradoxal?
Estranho?
Eu diria: "normal". Afinal, muitas vezes nos esquecemos de que quando falamos sobre questões humanas estamos nos afundando em pântanos sombrios repletos de contradições e permeados por paradoxos...

"Das Unheimliche" é o título original do texto. Nele, Freud percorre longo caminho partindo dos inúmeros significados da palavra Unheimliche, passando por algumas obras literárias de autores importantes, como Goethe e E. T. A. Hoffmann para tecer sua complexa e característica teia de raciocínios a fim de tentar explicar o inexplicável. Digo isso porque, em minha opinião, é impossível agarrarmos certos temas da (abstrata e subjetiva) condição humana e simplesmente dissecá-los como um aprendiz de medicina o faz tranquilamente (ao som de Mozart, Jimi Hendrix e perfume de formol) tendo em mãos diferentes partes de nossas visceras. Entretanto, médico que era, Freud nunca deixou de se inquietar com os inúmeros mistérios inerentes ao mundo psíquico humano e tampouco conseguiu deixar de lado seu ímpeto científico ao se debruçar sobre estas mesmas questões sombrias. Sorte a nossa, pois se não fosse assim os portões para as dimensões ocultas do ser humano ainda estariam fechados com os pesados cadeados da Igreja e todo o nosso desejo ainda estaria sujeito à autarquia religiosa. Sim, Freud (e, é bom que se diga, muitos de seus colegas e artistas contemporâneos) foi um grande "arrombador de portas".

Mas, voltando ao texto, o que seria afinal unheimlich?
Em certo momento, para definir o termo, Freud cita Schelling: "o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas apareceu."

A questão das palavras se torna tão complexa quanto mais nos aproximamos dos mistérios. Este texto seria um bom exemplo disso. Na antiga tradução que temos aqui no Brasil das obras de Freud o texto levava o nome de "O Estranho". Agora, porém, com esta nova e excelente tradução realizada de forma precisa e cuidadosa por Paulo César de Souza (já conhecido por suas boas traduções de Nietszche) o texto recebeu o nome de "O Inquietante". Na minha opinião uma escolha acertada, afinal o texto aborda aquilo que nos seria "o mais familiar de tudo" e não "estranho", apesar de muitas vezes se fazer passar por...
Inquietante é, talvez, a melhor palavra da língua portuguesa para tentarmos expressar tudo aquilo que não conseguiremos nunca dizer; inquietude seria a sensação que cada um de nós tem em seus momentos de mais absoluta solidão frente ao mistério e encantamento de estarmos vivos...
Sobre "O Inquietante" de Freud pensei várias coisas: nos contos extraordinários de Edgar Allan poe; no conceito de sincronicidade de Jung; lembrei de Juliano Pessanha e de Trakl, que disse que "a alma é um estranho na terra"...
Enfim, poder reler este texto de Freud me permitiu sentir inquietação. Legal! Para mim é isso que vale, é isso que busco quando leio qualquer coisa...
Recomendo, ou melhor, desejo que cada um de vocês possa sentir inquietações ao tatear o mistério oculto em nós mesmos...

3 comentários:

Mariana Portela disse...

Amei querido!
E ainda por cima veio em total sincronicidade com um assunto que pretendo abordar nos próximos dias. Ótimo ter você como parceiro intelectual de novo, mesmo que virtualmente!
Beijos

Q disse...

no meu curso na espanha tive aula com uma doutora em filosofia e literatura que estudou mto e o citava dizendo da cura pela palavra... me fez pensar mto na minha própria trajetória de roteirista/escritora e que pra mim tb é um diálogo e uma busca para entender os seres humanos e suas "inquietudes"... ;)

Claudio Brites disse...

É ao redor do Inquietante que ficamos como feras, e ele diz: decifra-me ou te devoro. Valeu meu parceiro. Abraços